terça-feira, 5 de agosto de 2008

O JULGAMENTO DO VALETE DE COPAS

UM CASO DE IDENTIDADE TROCADA


by John Tufail

Todo leitor de “Alice no País das Maravilhas” conclui que no julgamento (supostamente do Valete de Copas), o prisioneiro diante da corte é realmente o Valete de Copas ! Esta é uma conclusão bem racional! Esta conclusão está baseada na quantidade de evidências textuais e extra-textuais (ilustrativas), pré-conhecimento do poema infantil citado * (mas todos nós sabemos como Carroll gostava de brincar com os poemas), na relação contextual de certos personagens-chave (o Rei e a Rainha de Copas) que ficam em posição de acusadores e, também, nas duas ilustrações do julgamento tendo como naipe predominante o símbolo de Copas.

* “A Rainha de Copas fez algumas tortas,
Em um dia de verão:
O Valete de Copas roubou todas elas,
E levou embora sem hesitação”

Você notou que em nenhum lugar no texto (durante o julgamento ou em qualquer outro momento) o prisioneiro que está diante da Corte é citado, diretamente ou indiretamente, como sendo o Valete de Copas ? O fato de que a IDENTIDADE do prisioneiro nunca é questionada pelo leitor é devido ao acúmulo de pistas e alusões associativas feitas pelo narrador, como na cena do jardim com o Rei e a Rainha de Copas e o “Valete”. Uma dessas alusões é a ilustração do capítulo – uma ilustração de página inteira dominando a consciência do leitor desde o princípio. Você é levado a acreditar! (você já pensou, por acaso, porque Carroll insistiu em ter controle TOTAL sobre os ilustradores) Somente quando se examina a ilustração atentamente (e quem faz isso? – Carroll é, acima de tudo, ardiloso) que se pode ver que, de todos os personagens ilustrados nesta história, o Valete é o único cuja identidade é sempre ambígua. Em todas as ilustrações do Valete (há três) ele está ambiguamente representado. Ele NUNCA é mostrado usando o naipe de Copas. Na verdade, na ilustração do capítulo, o naipe mostrado na túnica do Valete é o naipe de Paus !


Há poucos exemplos tão bons dos perigos inerentes em aceitar-se, pelo valor da aparência, as características comprobatórias da ilustração. Na verdade, aquilo que Carroll, bem deliberadamente, está fazendo aqui é desestruturar o aspecto absurdo do Julgamento porque, se, como a ilustração MOSTRA, a pessoa diante da Corte NÃO é o Valete de Copas, grande parte dos procedimentos judiciais – especialmente as evidências dadas por várias testemunhas, realmente faz sentido.
O que Carroll faz é brincar com as expectativas do leitor. A “leitura” da ilustração feita pelo leitor é determinada por suas próprias expectativas. Primeiro, a existência do poema infantil. O poema é uma realidade anexada à história. O Valete de Copas é culpado porque o poema diz que ele é. – o Valete de Copas não existe fora desse contexto. Mas todos nós sabemos qual é a visão de Carroll sobre os poemas infantis ! Por exemplo : “Brilha, brilha, morceguinho!” em vez de "Brilha, brilha, estrelinha !"

Deveríamos esperar que Carroll lançaria algum tipo de jogo semiológico* com o elemento-chave do livro – o Julgamento, mas o que não esperávamos era que ele faria isso de uma maneira tão sutil, uma vez que a maioria dos autores gosta de deixar os leitores diante de um mistério até certo nível. Infelizmente para os leitores, Carroll não é a maioria dos autores! Ele é um especialista em lógica com um sensor de humor refinado e pessoal. Para Carroll, quanto mais tempo a piada ficar em segredo, melhor ela será.

Na maioria dos livros ilustrados, as gravuras complementam o texto. O leitor olha para a ilustração para “confirmar” o conteúdo textual. Mas não é sempre assim. Na Literatura do século 19, por exemplo, a ilustração tornou-se uma ferramenta poderosa para escritores como Thackery (Feira das Vaidades) e Dickens (notavelmente em Domby and Son) para esquivarem-se da “censura universal” em assuntos como adultério – ou mesmo para desestruturar o texto escrito.
Uma vez que o leitor já fez uma conjetura sobre o julgamento baseado na cantiga infantil, ele não compreende plenamente que o julgamento é um “absurdo”, não por causa das evidências, mas porque a pessoa na tribuna não é o Valente de Copas !

* Semiologia : teoria filosófica e estudo das funções dos sinais e símbolos.
Texto original em inglês :

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